Marcos Guilhen Esteves
As
relações entre legalidade e normalidade são mais estreitas do que
se costuma imaginar. Não se resumem aos casos de interdição,
internação compulsória ou medidas de segurança em matéria penal.
É certo que tais hipóteses são bastante elucidativas para
demonstrar o potencial de absorção pelo direito de padrões de
normalidade que funcionam no corpo social. No entanto, há formas
mais sutis de se impor a normalidade por meio da legalidade.
O
conceito foucaultiano de “norma” já soa, à primeira vista,
bastante peculiar para o profissional com formação jurídica. Nessa
área, a norma é geralmente identificada com a lei positiva, isto é,
dispositivo legal que seguiu os trâmites constitucionalmente
previstos para a elaboração de leis. A definição de norma é dada
a partir de um critério formal: se houver seguido o rito previsto, o
texto será dotado de “força normativa” (observância
obrigatória e inescusável). Do ponto de vista material, costuma-se
afirmar que o objetivo da norma jurídica é regular as condutas
humanas. É possível vislumbrar aqui uma aproximação com a ideia
foucaultiana de norma, mas acredito que o veículo jurídico mais
eficaz para impor a normalidade não é tanto o conteúdo da lei e,
sim, a interpretação que se dá a ela.
Parece
ser uma tendência cada vez mais forte na técnica legislativa a
utilização de conceitos vagos, abertos, imprecisos. Antes, era
comum que os primeiros artigos dos textos legais fossem dedicados às
definições consideradas importantes para sua adequada compreensão.
Hoje, considera-se que o ideal seria fazê-lo somente em casos de
extrema necessidade, pois a positivação do conceito impede que a
lei acompanhe as “evoluções sociais”, de modo que ela se torna
cada vez mais anacrônica. Exemplo disso é a “família”. Ao
invés de se pretender definir família, recomenda-se simplesmente
que se coloque o termo na lei.
Se,
por um lado, esse tipo de atitude permite uma maior discussão
conceitual, por outro, a imprecisão semântica cria um campo
bastante eficaz para funcionar como instrumento normativo (na acepção
foucaultiana). A polissemia de certos termos pode ser utilizada tanto
para uma argumentação mais “progressista” quanto para uma mais
“conservadora”. Ademais, não há como negar que, em vários
casos, a lei constitui o resultado de lutas sociais extremamente
importantes. A previsão legal, pura e
simples, não representa qualquer transformação social. Isso só
ocorre quando o reconhecimento de direitos é acompanhado de lutas e
movimentos aptos a gerar uma tomada de consciência na sociedade.
O
direito de família é um verdadeiro arcabouço de padrões de
normalidade. Poucas áreas jurídicas são tão elucidativas nesse
ponto. Não é preciso nem discutir casamento homoafetivo. Basta
pensar que, até pouco tempo atrás, pessoas solteiras estavam
excluídas do conceito de família, o que lhes retirava várias
garantias. Além do direito de família, pode-se mencionar a fatídica
figura do homem-médio, tão criticada e ao mesmo tempo tão
utilizada como parâmetro de julgamentos supostamente “legais”.
É
por isso que, segundo Foucault, deve-se colocar o direito sempre sob
forte preocupação. Por ser instrumento chamado constantemente a
participar da “arbitragem social”, o conteúdo das normas
jurídicas deve ser constantemente debatido. Isso para evitar, tanto
quanto possível, que a lei funcione como norma e, sobretudo, para
que o reconhecimento de direitos não se torne mera demagogia.
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