segunda-feira, 28 de abril de 2014

Entre Normalidade e Legalidade


Marcos Guilhen Esteves


As relações entre legalidade e normalidade são mais estreitas do que se costuma imaginar. Não se resumem aos casos de interdição, internação compulsória ou medidas de segurança em matéria penal. É certo que tais hipóteses são bastante elucidativas para demonstrar o potencial de absorção pelo direito de padrões de normalidade que funcionam no corpo social. No entanto, há formas mais sutis de se impor a normalidade por meio da legalidade.
O conceito foucaultiano de “norma” já soa, à primeira vista, bastante peculiar para o profissional com formação jurídica. Nessa área, a norma é geralmente identificada com a lei positiva, isto é, dispositivo legal que seguiu os trâmites constitucionalmente previstos para a elaboração de leis. A definição de norma é dada a partir de um critério formal: se houver seguido o rito previsto, o texto será dotado de “força normativa” (observância obrigatória e inescusável). Do ponto de vista material, costuma-se afirmar que o objetivo da norma jurídica é regular as condutas humanas. É possível vislumbrar aqui uma aproximação com a ideia foucaultiana de norma, mas acredito que o veículo jurídico mais eficaz para impor a normalidade não é tanto o conteúdo da lei e, sim, a interpretação que se dá a ela.
Parece ser uma tendência cada vez mais forte na técnica legislativa a utilização de conceitos vagos, abertos, imprecisos. Antes, era comum que os primeiros artigos dos textos legais fossem dedicados às definições consideradas importantes para sua adequada compreensão. Hoje, considera-se que o ideal seria fazê-lo somente em casos de extrema necessidade, pois a positivação do conceito impede que a lei acompanhe as “evoluções sociais”, de modo que ela se torna cada vez mais anacrônica. Exemplo disso é a “família”. Ao invés de se pretender definir família, recomenda-se simplesmente que se coloque o termo na lei.
Se, por um lado, esse tipo de atitude permite uma maior discussão conceitual, por outro, a imprecisão semântica cria um campo bastante eficaz para funcionar como instrumento normativo (na acepção foucaultiana). A polissemia de certos termos pode ser utilizada tanto para uma argumentação mais “progressista” quanto para uma mais “conservadora”. Ademais, não há como negar que, em vários casos, a lei constitui o resultado de lutas sociais extremamente importantes. A previsão legal, pura e simples, não representa qualquer transformação social. Isso só ocorre quando o reconhecimento de direitos é acompanhado de lutas e movimentos aptos a gerar uma tomada de consciência na sociedade.
O direito de família é um verdadeiro arcabouço de padrões de normalidade. Poucas áreas jurídicas são tão elucidativas nesse ponto. Não é preciso nem discutir casamento homoafetivo. Basta pensar que, até pouco tempo atrás, pessoas solteiras estavam excluídas do conceito de família, o que lhes retirava várias garantias. Além do direito de família, pode-se mencionar a fatídica figura do homem-médio, tão criticada e ao mesmo tempo tão utilizada como parâmetro de julgamentos supostamente “legais”.
É por isso que, segundo Foucault, deve-se colocar o direito sempre sob forte preocupação. Por ser instrumento chamado constantemente a participar da “arbitragem social”, o conteúdo das normas jurídicas deve ser constantemente debatido. Isso para evitar, tanto quanto possível, que a lei funcione como norma e, sobretudo, para que o reconhecimento de direitos não se torne mera demagogia.

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