segunda-feira, 28 de abril de 2014

Entre Normalidade e Legalidade


Marcos Guilhen Esteves


As relações entre legalidade e normalidade são mais estreitas do que se costuma imaginar. Não se resumem aos casos de interdição, internação compulsória ou medidas de segurança em matéria penal. É certo que tais hipóteses são bastante elucidativas para demonstrar o potencial de absorção pelo direito de padrões de normalidade que funcionam no corpo social. No entanto, há formas mais sutis de se impor a normalidade por meio da legalidade.
O conceito foucaultiano de “norma” já soa, à primeira vista, bastante peculiar para o profissional com formação jurídica. Nessa área, a norma é geralmente identificada com a lei positiva, isto é, dispositivo legal que seguiu os trâmites constitucionalmente previstos para a elaboração de leis. A definição de norma é dada a partir de um critério formal: se houver seguido o rito previsto, o texto será dotado de “força normativa” (observância obrigatória e inescusável). Do ponto de vista material, costuma-se afirmar que o objetivo da norma jurídica é regular as condutas humanas. É possível vislumbrar aqui uma aproximação com a ideia foucaultiana de norma, mas acredito que o veículo jurídico mais eficaz para impor a normalidade não é tanto o conteúdo da lei e, sim, a interpretação que se dá a ela.
Parece ser uma tendência cada vez mais forte na técnica legislativa a utilização de conceitos vagos, abertos, imprecisos. Antes, era comum que os primeiros artigos dos textos legais fossem dedicados às definições consideradas importantes para sua adequada compreensão. Hoje, considera-se que o ideal seria fazê-lo somente em casos de extrema necessidade, pois a positivação do conceito impede que a lei acompanhe as “evoluções sociais”, de modo que ela se torna cada vez mais anacrônica. Exemplo disso é a “família”. Ao invés de se pretender definir família, recomenda-se simplesmente que se coloque o termo na lei.
Se, por um lado, esse tipo de atitude permite uma maior discussão conceitual, por outro, a imprecisão semântica cria um campo bastante eficaz para funcionar como instrumento normativo (na acepção foucaultiana). A polissemia de certos termos pode ser utilizada tanto para uma argumentação mais “progressista” quanto para uma mais “conservadora”. Ademais, não há como negar que, em vários casos, a lei constitui o resultado de lutas sociais extremamente importantes. A previsão legal, pura e simples, não representa qualquer transformação social. Isso só ocorre quando o reconhecimento de direitos é acompanhado de lutas e movimentos aptos a gerar uma tomada de consciência na sociedade.
O direito de família é um verdadeiro arcabouço de padrões de normalidade. Poucas áreas jurídicas são tão elucidativas nesse ponto. Não é preciso nem discutir casamento homoafetivo. Basta pensar que, até pouco tempo atrás, pessoas solteiras estavam excluídas do conceito de família, o que lhes retirava várias garantias. Além do direito de família, pode-se mencionar a fatídica figura do homem-médio, tão criticada e ao mesmo tempo tão utilizada como parâmetro de julgamentos supostamente “legais”.
É por isso que, segundo Foucault, deve-se colocar o direito sempre sob forte preocupação. Por ser instrumento chamado constantemente a participar da “arbitragem social”, o conteúdo das normas jurídicas deve ser constantemente debatido. Isso para evitar, tanto quanto possível, que a lei funcione como norma e, sobretudo, para que o reconhecimento de direitos não se torne mera demagogia.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Por uma política do inumano

Alisson Ramos de Souza

Tenho em vista o debate, realizado em 1971, entre Michel Foucault e o linguista Noam Chomsky (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=3wfNl2L0Gf8) para a colocação da seguinte questão: se não existe tal coisa chamada ‘natureza humana’, então, qual é o propósito de uma militância política? Essa questão é, de certo modo, uma reformulação e desdobramento daquela que Foucault, provocativamente, dirige a Chomsky: “então é em nome de uma justiça mais pura que você critica o funcionamento da justiça?” Chomsky acredita(va) numa natureza humana que era impedida de se realizar, de concretizar seu potencial criativo, ter reconhecida sua dignidade, liberdade etc., devido a constrangimentos advindos de formas econômicas, políticas e sociais repressivas. Tais formas seriam injustas, pois, apesar do Estado – em seus mecanismos legais – apresentá-las como sendo justas, haveria um descompasso entre a justiça atual e a ‘justiça ideal, entre o ser e o dever-ser.
Existiria, portanto, uma inadequação entre a essência do homem – que em seu verdadeiro eu é bom, justo, criativo etc. –, e o modo como ele vive, sobretudo, na atual formação social, a capitalista; essa inadequação, no jargão marxista, é chamada de ‘alienação’. Aliás, marxistas e sartreanos (e o próprio Sartre) tenderam a enxergar, com boa dose de má vontade, no livro As palavras e as coisas, publicado em 1966, que, entre as várias noções e questões abordadas, traz o tema da ‘morte do homem’, um manifesto contra o humanismo e a retirada do homem de seu posto de sujeito histórico. Assim, para seus detratores, o anúncio da morte do homem inviabilizaria qualquer ação política, uma vez que a inexistência de uma essência humana tornava sem sentido uma transformação da sociedade. Em certa medida, creio que tenha sido essa a intenção do filósofo francês.
Ora, o homem, para Foucault, não é um ser incompleto, visto que ele nem sequer existe, ou, pelo menos, nem sempre existiu. A história que ele julga ser sua lhe é anterior, e sua existência concreta é atravessada pelas positividades das ciências humanas que o criam: biologia, economia e filologia. Os limites de sua existência são, assim, determinados por uma episteme bem específica, surgida em meados do séc. XIX. E dada a finitude que funda seu conhecimento e sua existência, ele está condenado a morrer. Isso muda radicalmente o modo de se fazer política, ou melhor, de militar politicamente, uma vez que não faz mais sentido lutar por aquilo que perecerá. Se me é permitido uma metáfora, seria como medicar um paciente em estado terminal. Dessa feita, o problema passa a ser inteiramente outro: não mais mudar uma sociedade injusta que desfigura o homem; pelo contrário, trata-se agora de apagar seu rosto, isto é, de superar sua forma.
Entretanto, Foucault reconhece que o Estado moderno – que se estabelece com o capitalismo – age de modo repressivo, mas, em sua concepção, não existe uma classe exclusiva que detém o poder, exercendo-o através do Estado, e este não pode ser definido como uma entidade centralizada. O poder percorre todo o tecido social, não sendo portanto um privilégio adquirido ou conservado da classe dominante. Ele é menos uma propriedade do que uma estratégia, um exercício, e seus efeitos não são atribuíveis a uma apropriação, mas a disposições, manobras, táticas, técnicas, funcionamentos; ele não está, rigorosamente falando, localizado no aparelho de Estado, pois o próprio Estado aparece como efeito de conjunto ou resultante de engrenagens e de focos que se situam num nível bem diferente e que constituem por sua conta uma ‘microfísica do poder’; e nada tem a ver com superestrutura; não se inscreve na ordem de uma causalidade molar, sua ‘natureza’ é um muito mais molecular, microscópica. E, finalmente, não pode ser abolido, visto que o poder não existe, pelo menos não a despeito de práticas e relações.
A colocação inicial da qual não existe uma natureza humana nos leva a um impasse: se o homem não existe – essencialmente falando –, mas, ao mesmo tempo, ele é reprimido pelas instituições que o atravessa, então, por que ou pelo que lutar? Na verdade, não existe uma contradição nisso. Sua luta deve ser empreendida contra as instituições que fabricam e modelam sua subjetividade, que normatizam sua existência, instâncias de saber-poder. Se o homem deve resistir, insurgindo-se contra o atual sistema, não é para readequar sua essência à sua existência, mas, creio eu, para tornar essa última mais tolerável. Como lembra Foucault, onde há poder, há também resistência.
As revoluções são tidas como os acontecimentos políticos por excelência, contudo, que tipo de revolução seria desejada? Certamente, não uma que tivesse um programa, que se inscrevesse na ordem da causalidade, com uma imagem prévia do futuro ou do que é ser homem. As revoluções operam um corte, seccionam a imagem do atual, provocando uma ruptura, que nada tem a ver com continuidade histórica, com tomada de consciência, ideologia etc. As grandes utopias emancipatórias jamais representaram um grande risco para o status quo, visto que, apesar de se colocarem como um possível, são sempre uma alter-nativa já presente, isto é, ‘o Outro’ do atual, são sempre um dèjà-là.
Para concluir, tomando por empréstimo o termo de seus contemporâneos, Deleuze e Guattari, o que seria desejado seria uma microrrevolução, uma revolução molecular, sem sujeitos. Trata-se assim não mais de re-conhecer os direitos – como se eles já existissem a priori –, mas de inventá-los. Não mais utopias, mas heterotopias. Da soteriologia cristã ao rousseaunismo marxista, o homem é sempre visto como alguém que precisa ser salvo, seja do pecado original ou do jugo do capital, acreditando que com a superação das formas que o sujeitam – o mundo terreno ou o modo de produção capitalista –, ele finalmente estaria em concordância consigo mesmo. O que quis advogar, aqui, tendo o pensamento de Foucault como referência, é que o homem não precisa ser salvo, exceto da tentação de afirmar aquilo que ele não é.

O conceito de discurso: duas abordagens

Yuri José Victor Madalosso

Deixo claro aqui que o texto a seguir não é, de forma alguma, uma tentativa de conciliação ou mera comparação, mas uma excitação ao debate filosófico pontuado entre duas tradições de pesquisa diferentes mas igualmente instigantes e, julgo eu, interessantes para as perspectivas de nosso grupo de pesquisa. sou iniciante em Foucault, e posso cometer graves deslizes que serão corrigidos com as sugestões dos leitores e mais leituras minhas.
Refiro-me às obras e ideias de dois autores. Em primeiro lugar à Michel Foucault, considerado por muitos um componente "volátil" da filosofia dita continental, um estudioso deveras "inrotulável": estruturalista, pós-estruturalista, pós-moderno, historiador, etc. Entender seus escritos e seus objetivos teóricos, suas ferramentas e estratégias de pesquisa, a estruturação não-linear de seu percurso intelectual, entre outras especificidades, são verdadeiros desafios e horizontes inexplorados tanto para nós, pesquisadores iniciantes de filosofia, quanto para quem já se insere nas diversas e mais atuais discussões filosóficas. Em segundo lugar, Edmund Husserl, "pai" de uma das maiores e mais controversas correntes de pensamento contemporâneas: a fenomenologia. Sua obra é peça chave para entendermos muito do que se produziu em filosofia desde o começo do século XX. Consagrado como influenciador do que muitos chamam hoje de "filosofia continental", no entanto, seu programa de investigação filosófica, os debates em que se insere, a estrutura lógica de sua obra nos remetem a discussões familiares a filósofos analíticos e muitas de suas teses são objeto de atuais estudos que o situam em um grande debate em que se inserem Gottlob Frege, Georg Cantor, e por aí vai.
Revela-se, contudo, após vermos estes pormenores históricos destes autores, um interesse e exaustiva investigação acerca de como os discursos se estruturam e se perfazem (ou se devem perfazer), principalmente no que tange ao discurso científico. Neste setor, situam-se as obras História da Loucura, de Foucault e Investigações Lógicas, de Husserl. O primeiro autor quer entender a constituição de um discurso científico que se institucionalizou na modernidade: o da psicologia. O segundo, por sua vez, quer propor uma nova "instituição" aos fundamentos de um discurso que se estabelece a passos rápidos como ciência: a lógica. Pois bem: o que buscam estes autores ao se depararem com estes discursos?
A análise das estratégias e práticas que subjazem os conceitos e métodos clínicos da psicologia, de como se procede o sujeitamento de certos discursos e do objetos destes mesmos, dentro do campo psiquiátrico, diferem em grande parte de uma tentativa de descrever as condições de possibilidade de uma "teoria das teorias", uma "nova lógica", de um fundamento rigoroso, objetivo e preciso de um discurso científico que pretende ser arcabouço e estrutura para outros discursos científicos. Confrontam-se, aqui, os objetos "razão/desrazão" e "expressão/significação/objeto": o "fundamento", o modus operandi que leva ao objeto de investigação, aqui, é o desconstrução, análise e "desobstrução", por assim dizer, e, de um outro lado, de construção, síntese sistemática e descrição científica. De um lado, vemos o trabalho arqueológico cujo objetivo é a "escavação" das práticas políticas, estéticas, econômicas que tornam hegemônicos discursos, articulações teórico-conceituais situadas em um contexto histórico determinado. De outro, vemos uma descrição objetiva e teorética de como se fundamenta epistêmica e semanticamente um discurso científico - e mais: inteligível. A significatividade do discurso lógico aparece como a-histórica, e a demarcação/territorialização entre o fatual e o lógico é essencial: há fronteira clara entre o discurso objetivo e discurso subjetivo, entre discurso fundador e fundado, etc.
Conforme a isto, percebamos que as concepções dos dois autores tentam ultrapassar a construção de uma semiótica da linguagem. Embora nos pareça que Foucault tenha acentuado o "uso e práticas" da linguagem e Husserl o seu significado, o norte de investigação, de compreensão, da linguagem enquanto linguagem utilizada por uma ou várias ciências é, nessas obras, uma compreensão pelo "originário" do discurso psiquiátrico ou pelo discurso lógico-matemático. A questão é como se torna fortuito ao cânone de uma ciência ou se torna possível tanto a manutenção político-histórica de um determinado discurso ou sua confirmação ou fundação como discurso ele mesmo fundador e sistematizado.

domingo, 13 de abril de 2014

Michel Foucault e o esgotamento da noção de revolução

Lorena de Paula Balbino

Foucault afirma em entrevista que a política situa-se, desde o século XIX, em relação a revolução. Na ocasião dessa afirmação o filósofo fazia referência especificamente a Revolução Francesa. Esse evento em especifico tornou-se no interior da história política algo que Kant identificou como signo do progresso. O retorno da revolução torna-se, a partir desse evento, um problema político no que se refere a seu caráter desejável. Diante disso, Foucault constata o seguinte: “Mas acho que fazer política sem ser um político é tentar saber com a maior honestidade possível se a revolução é desejável. É explorar este terrível terreno movediço onde a política pode se enterrar” (FOUCAULT, 2008, p. 240).
Mas o que significa desejar a revolução e preocupar-se com o seu retorno? Primeiramente pensar a revolução em termos de seu retorno significa ter uma concepção específica de tempo. Essa concepção implica entender que a revolução imprime uma ruptura no tempo marcando-o permanentemente e abrindo o caminho em direção ao progresso, certamente então uma concepção teleológica do tempo. Foucault, como diagnosticador do presente, entendia a tarefa filosófica como crítica da atualidade. Seu pensamento rompeu com a noção teleológica de tempo ao empreender a sua “ontologia do presente” e ao recusar-se a ser cúmplice da figura do intelectual representante da consciência universal do povo.  A esse respeito afirma Foucault: “Sonho com o intelectual destruidor das evidências e das universalidades, que localiza e indica nas inércias e coações do presente os pontos fracos, as brechas, as linhas de força; que sem cessar se desloca, não sabe exatamente onde estará ou o que pensará amanhã, por estar muito atento ao presente” (FOUCAULT, 2008, p. 242).
A concepção de história do filósofo francês e a maneira como escreve, por exemplo, sobre o cuidado ético nos gregos, a disciplina, a loucura e seu enclausuramento, se inscrevem na atitude crítica de Foucault ao ver a história como acontecimento em contraposição a noção de evento. Além da ruptura com a noção teleológica de tempo e a concepção marxista de história o trabalho de Foucault implica pensar as relações entre verdade, saber e poder tomando como horizonte de reflexão a crítica do que somos. 
Desejar a revolução implica estar de acordo com determinadas estratégias políticas referentes a concepção de história, poder e tempo que estão implicadas na noção de revolução. Desse modo, parece-me que a noção de revolução supõe uma vanguarda intelectual que tem o papel de revelar verdades e guiar a consciência do povo. Essa ideia do papel do intelectual e sua posição histórica, como personalidade individual da universalidade obscura que era o proletariado, foram questionadas pelo filósofo em diversas de suas entrevistas (FOUCAULT, 2008, p. 8). Para Foucault não há mais uma vanguarda intelectual que teria por objetivo atuar na conscientização daqueles que lutam dentro de aparelhos como os sindicatos, os partidos, os movimentos sociais, etc. Foucault diagnostica que há muito o papel do intelectual mudou graças a novas relações entre teoria e prática e que hoje o intelectual atua em setores determinados da sociedade.
 A forte imagem do intelectual deriva da crença na necessidade de representação e que tem suas raízes nas lutas contra o poder e na indispensabilidade em conhecer todas as suas formas de atuação. É possível que a forma como o marxismo, por exemplo, compreende o poder seja insuficiente. Foucault aponta que não só a análise sobre os aparelhos de estado não esvaziam as formas de exercício do poder como a ideia de que o poder se detém (e não se exerce) por algo totalizante como o estado pressupõe uma luta global. Em sua análise Foucault procurou descentralizar o problema do poder e passar para o exterior do Estado a fim de encontrar as tecnologias de poder, como demonstra em seu curso “segurança, território, população”, e procurar ver através dessas tecnologias como se constituía “campos de verdade com objetos de saber”, é assim que ele chega, por exemplo, a noção de governamentalidade (FOUCAULT, 2008a, p. 157-158).
Ao descentralizar o problema do poder Foucault nos mostra como a noção de Estado foi supervalorizada e reduzida a certas funções de desenvolvimento e relações de produção que o fizeram tornar-se o principal alvo de ataque ao poder e um espaço a ser tomado. No entanto, alerta-nos Foucault, o Estado: “não teve essa unidade, essa individualidade, essa funcionalidade rigorosa e direi até essa importância. Afinal de contas, o Estado não é mais que uma realidade compósita e uma abstração mistificada, cuja importância é muito menor do que se acredita”. (FOUCAULT, 2008, p. 292). Descentralizar o poder e não tomar o Estado como alvo único e principal a ser questionado requer pensar nas estratégias de lutas contra o poder. Foucault observa que as lutas desenvolvem-se contra formas particulares de poder em que ao se localizar um foco, dar nome a ele e dizer quem o exerce constitui uma inversão de poder. É por isso que: “Se discursos como, por exemplo, os dos detentos ou dos médicos de prisões são lutas, é porque eles confiscam, ao menos por um momento, o poder de falar da prisão, atualmente monopolizado pela administração e seus compadres reformadores” (FOUCAULT, 2008, p. 76). 
É assim, que seu trabalho no G.I.P. (Grupo de Informação sobre as Prisões) foi um esforço para demonstrar a necessidade de se falar por si mesmo e demonstrar o “erro” da representação. É nesse sentido que Deleuze afirma que Foucault nos ensinou sobre “a indignidade de falar pelos outros”. E é nesse contexto que o filósofo francês afirma em conversa com Deleuze do ano de 1972: “Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber, elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles, e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber”. (FOUCAULT, 2008,p.71)
Se há, portanto, um sistema de poder que barra e invalida determinados discursos qual é então o lugar deles? Certamente o lugar de desvio, o que Foucault, em contraposição a noção de utopia, chama de heterotopia. A heterotopia é o lugar dos desviantes da norma, daqueles que estão em crise, é, portanto, um contraposicionamento no interior da sociedade. A noção de heterotopia assume formas variadas que não corresponde a um aspecto universal e que talvez não se esgote em um número limitado, ela também pode desaparecer e reinventar-se através do tempo. A noção de heterotopia vai contra a transcendentalidade da utopia e evidencia a impossibilidade da universalidade como espaço último da sociedade, a universalidade é a utopia ocidental que pretende um posicionamento sem lugar real (PASSETI, 2003, p.46).
Acreditamos que a ideia de revolução pressupõe uma concepção de tempo, de história e de poder que desejam um projeto assentado na ideia de uma libertação total. Foucault tornou explícito em seu trabalho a impossibilidade de uma libertação total uma vez que não há um poder único que estrutura e perpassa toda a vida e sim diferentes formas de racionalidade política, diferentes dispositivos de poder sobre os quais é necessário criar especificas formas de resistência. É desse modo, que Foucault demonstra que a noção de revolução não serve mais ao pensamento político-filosófico como instrumento para pensar o presente.
Referências:
CANDIOTTO, C. Política, revolução e insurreição em Michel Foucault. Revista de Filosofia: Aurora), v. 25 , 2013.
FOUCAULT, M. Outros Espaços. In: Motta, Manoel Barros da. (org). Michel Foucault: Estética, literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. (Ditos e Escritos).
______________. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008.
______________. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008a.
______________. O governo de si e dos outros. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
PASSETTI, E. Vivendo e revirando-se: heterotopias libertárias na sociedade de controle. Verve (PUCSP), São Paulo, v. 4, 2003.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Biopolítica, medicalização e risco

Ricardo Lopes Ferreira

Atualmente no Brasil tem-se uma política que aparenta ter uma preocupação muito grande com uma questão, sem dúvida importante que é a inclusão social, é possível perceber um movimento pelo qual pessoas portadoras de necessidades especiais: crianças e adultos são integrados, à escola dita “normal” e ao mercado de trabalho através de leis que vão garantir esse acesso a tais pessoas. Essa medida é positiva, entretanto o objetivo não é realizar uma análise dessa questão, mas sim considerar o que pode parecer certo paradoxo em relação a algumas situações com as quais essa política se depara.
Há algumas semanas foi noticiado nos telejornais, rádio, internet e jornais impressos o caso de uma professora do interior de São Paulo que após ser aprovada em concurso público não pôde assumir o cargo pelo fato de ter sido reprovada no exame médico, o que assusta nisso é que o impedimento para assumir o cargo público se deve porque ela, segundo laudo médico baseado em dados da Organização mundial da saúde (OMS), foi caracterizada dentro de um quadro de obesidade mórbida, uma situação realmente difícil de ser entendida, mas o que deve ser ressaltado é que este não é um caso isolado e quando se faz uma pesquisa, que nem precisa ser muito rigorosa ou minuciosa, porque é só procurar na internet que se encontram vários casos semelhantes e um deles chama a atenção, uma mulher foi impedida de assumir um determinado cargo público por um fato ainda mais assustador, o fato de ter tido câncer de mama, ou seja, ela ficou doente e obteve a cura da doença, mas ainda assim só garantiu seu direito por vias jurídicas. É o que acontece em todas essas situações, a pessoa tem que questionar a decisão do Estado através de meios jurídicos.
Todo esse processo é complexo, mas um dos paradoxos que podem ser apontados é que, partindo do que foi o slogan das propagandas do Estado Federal por algum tempo, a saber: “Brasil um país de todos”, pode-se concluir que quando se trata de trabalhar na esfera pública o slogan deveria ser completado com o termo “os saudáveis”. Outro aspecto paradoxo é que essas doenças são motivo de preocupação biopolítica para o Estado, por isso existem mecanismos que tem a finalidade de medicalizar essas doenças, isto é, a medicina se caracteriza por um trabalho que não é apenas curar a doença já estabelecida, mas também agir de forma preventiva para evitar ou amenizar a possibilidade da doença, buscando gerenciar os riscos que podem causá-la.
Para Foucault esse é um dos processos que leva ao que ele chama de “sociedade de normalização” onde a biopolítica que tem como instrumento a medicina elabora uma norma da saúde à qual serão referidos todos os comportamentos e estados de saúde, isso é o que daria origem a esses mecanismos de exclusão que tem como objetivo oferecer proteção a alguns riscos, como exemplo, os casos tomados acima revelam uma racionalidade técnico-burocrática para evitar que o Estado assuma o risco de contratar um trabalhador que esteja doente ou que comporte em si a possibilidade de vir a ficar doente, representando com isso custos, afastamento do trabalho etc., mas isso não é uma atitude específica da esfera pública, na iniciativa privada também ocorre, talvez seja mais fácil a ela esconder o fato? É difícil responder, o importante é considerar que existe uma legislação e leis que em tese, permitem ao setor público não contratar uma pessoa doente. Esse é um problema que mostra uma contradição em relação ao que são alguns dos objetivos dessa política, ou seja, essas leis que protegem o Estado excluem alguns indivíduos, mas e a Política de inclusão social? É importante compreender que essa sociedade visa não correr riscos ou minimizá-los o máximo possível, isso traz consequências.

 Bom pessoal esse texto é o apontamento para uma pesquisa, portanto fiquem à vontade para criticar, comentar e recomendar algumas leituras. Obrigado.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Crônica de uma morte anunciada

Alisson Ramos de Souza

Em As palavras e as coisas (1966; 2002), Michel Foucault anuncia a ‘morte do homem’, tal como Nietzsche havia, cerca de um século antes, anunciado a ‘morte de Deus’. Com efeito, poder-se-ia afirmar que a morte do homem já era colocada no instante mesmo que a morte de Deus era divulgada, pois “o homem e Deus pertencem um ao outro, onde a morte do segundo é sinônimo do desaparecimento do primeiro[i].
O homem, diz Foucault, é uma invenção, uma simples dobra de nosso saber, uma figura que não tem dois séculos, cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente e que desaparecerá desde que este houver encontrado uma forma nova. Para nós, o que subjaz a essa temática é o esgotamento do cogito, uma vez que a existência do homem, na passagem da Idade Clássica para a Idade Moderna, não poderia ser mais deduzida a partir de uma redução transcendental, depurada de toda experiência, ao contrário, sua existência só pode ser colocada nas positividades do saber, enquanto um ser finito que vive, que trabalha e que fala.
Se com “a linguagem clássica como discurso comum da representação e das coisas” não se tematiza a existência do homem, é porque esse era um problema que não podia ser colocado, visto que não “era possível que a existência humana fosse posta em questão por ela própria, pois o que nela se articulava eram a representação e o ser[ii]”. Dito de outro modo, representava-se aquilo que era. Foi o surgimento das ciências humanas, na Idade Moderna, que possibilitou o nascimento desse natimorto, que assume para si o posto de sujeito e objeto do conhecimento, perdendo-se num mise en abyme, como sugere o quadro las meninas, de Diego Velàzquez, obra analisada no início de As palavras e as coisas.
Foucault observa que, com o esmaecimento do discurso clássico, ocorre uma mutação no solo arqueológico: a história natural torna-se biologia, a análise das riquezas torna-se economia, e a reflexão sobre a linguagem faz-se filologia. E o homem, duplo de si mesmo, empírico-transcendental, fundamento e fundado na representação, é esquartejado, tendo seus pedaços espalhados na biologia, na economia e, principalmente, na filologia. É o fim da representação; é a queda da quarta parede. Ele perde seu papel de sujeito da história, tornando-se tão-somente um espectador olhado, que, ainda por cima, chega atrasado à peça, pois “o homem só se descobre ligado a uma historicidade já feita[iii]”, e é sempre sobre um fundo já começado que ele pode pensar o que lhe vale como origem, origem essa que se articula com o já começado do trabalho, da vida e da linguagem. Nesse sentido, a análise de Louis Althusser vai ao encontro da arqueologia foucaultiana ao afirmar que “a história é um processo; e um processo sem sujeito[iv]”.



[i] Michel Foucault, As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas (Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002), p.472.
[ii] Ibid., p. 429.
[iii] Ibid., pp. 455-456.
[iv]  Louis Althusser. Posições. “Resposta a John Lewis” (Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978), p. 28.