quarta-feira, 9 de abril de 2014

Crônica de uma morte anunciada

Alisson Ramos de Souza

Em As palavras e as coisas (1966; 2002), Michel Foucault anuncia a ‘morte do homem’, tal como Nietzsche havia, cerca de um século antes, anunciado a ‘morte de Deus’. Com efeito, poder-se-ia afirmar que a morte do homem já era colocada no instante mesmo que a morte de Deus era divulgada, pois “o homem e Deus pertencem um ao outro, onde a morte do segundo é sinônimo do desaparecimento do primeiro[i].
O homem, diz Foucault, é uma invenção, uma simples dobra de nosso saber, uma figura que não tem dois séculos, cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente e que desaparecerá desde que este houver encontrado uma forma nova. Para nós, o que subjaz a essa temática é o esgotamento do cogito, uma vez que a existência do homem, na passagem da Idade Clássica para a Idade Moderna, não poderia ser mais deduzida a partir de uma redução transcendental, depurada de toda experiência, ao contrário, sua existência só pode ser colocada nas positividades do saber, enquanto um ser finito que vive, que trabalha e que fala.
Se com “a linguagem clássica como discurso comum da representação e das coisas” não se tematiza a existência do homem, é porque esse era um problema que não podia ser colocado, visto que não “era possível que a existência humana fosse posta em questão por ela própria, pois o que nela se articulava eram a representação e o ser[ii]”. Dito de outro modo, representava-se aquilo que era. Foi o surgimento das ciências humanas, na Idade Moderna, que possibilitou o nascimento desse natimorto, que assume para si o posto de sujeito e objeto do conhecimento, perdendo-se num mise en abyme, como sugere o quadro las meninas, de Diego Velàzquez, obra analisada no início de As palavras e as coisas.
Foucault observa que, com o esmaecimento do discurso clássico, ocorre uma mutação no solo arqueológico: a história natural torna-se biologia, a análise das riquezas torna-se economia, e a reflexão sobre a linguagem faz-se filologia. E o homem, duplo de si mesmo, empírico-transcendental, fundamento e fundado na representação, é esquartejado, tendo seus pedaços espalhados na biologia, na economia e, principalmente, na filologia. É o fim da representação; é a queda da quarta parede. Ele perde seu papel de sujeito da história, tornando-se tão-somente um espectador olhado, que, ainda por cima, chega atrasado à peça, pois “o homem só se descobre ligado a uma historicidade já feita[iii]”, e é sempre sobre um fundo já começado que ele pode pensar o que lhe vale como origem, origem essa que se articula com o já começado do trabalho, da vida e da linguagem. Nesse sentido, a análise de Louis Althusser vai ao encontro da arqueologia foucaultiana ao afirmar que “a história é um processo; e um processo sem sujeito[iv]”.



[i] Michel Foucault, As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas (Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002), p.472.
[ii] Ibid., p. 429.
[iii] Ibid., pp. 455-456.
[iv]  Louis Althusser. Posições. “Resposta a John Lewis” (Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978), p. 28.

Um comentário:

  1. Interessante como em Nietzsche a morte de Deus afirma o sujeito enquanto em Foucault ela o extermina. Este artigo esclarece muito bem que para Foucault não existe um modelo universal e atemporal de homem, como para Descartes e Kant, por exemplo, mas sim diferentes modelos de homens que surgem com novos saberes, técnicas e linguagens no decorrer da historia, na medida em que encontram nova forma de vida.

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