sábado, 21 de junho de 2014

A moral dos prazeres na perspectiva grega

                                                                                               Joel da Silva Ribeiro

É possível compreender em História da sexualidade que, de acordo com Foucault, a moral dos prazeres se apresentara de diversas formas, em diferentes contextos no decorrer da história. Contudo, na lacuna que separa a vida sexual do homem contemporâneo daquela praticada pelo homem grego clássico, a prática do amor, independente de sua época, estivera ligada ao autoconhecimento. Isto é, para Foucault, a atividade sexual, de um modo ou de outro, mantém relação direta com a questão moral e epistemológica do homem, na medida em que se tornara meio para a verdade enquanto conhecimento de si. Segundo Foucault, no cristianismo, a sexualidade enquanto “chão epistemológico” que inquiri sobre a moral, restringe-se na relação homem mulher. Nesse sentido, o conhecimento de si seria possível pelo amor à virgindade, à pureza feminina e à procriação da espécie humana. No entanto, a moral dos prazeres em contexto grego, em comparação ao modelo ascético monástico, parece revestir-se de uma preocupação mais austera e sistemática em relação ao conhecimento de si por meio das práticas afetivas. Na interpretação de Foucault, isso decorre do fato de ter existido na cultura grega clássica uma liberdade muito grande a respeito do tema, o que possibilitou uma investigação mais aprofundada sobre o amor e suas implicações na esfera moral, epistemológica e até mesmo ontológica. Segundo Foucault, diferente de como acontece nas sociedades de berços cristãos e judaicos, para os gregos, o autoconhecimento, oriundo da prática amorosa, estava voltado para a relação homossexual. Para justificar sua posição, Foucault aponta o Fedro e o Banquete de Platão como literaturas que discorrem sobre a erótica do amor entre os rapazes. Logo, se aceitarmos que a relação afetiva implica terminantemente em questionamentos que aspiram ao conhecimento de algum objeto, como Foucault interpretara a moral dos prazeres em toda história da humanidade, então é possível dizer que esses diálogos de Platão serviram como pano de fundo para toda sua epistemologia posterior. Os diálogos encontrados na literatura platônica, que apontam os amores frustrados e desonrosos, nos quais o sujeito é corrompido moralmente e fisicamente, como problemas a serem resolvidos na relação entre os rapazes, se apresentam, aos olhos de Foucault, como a finalidade suprema da prática sexual. Com efeito, a resolução de tais problemas e a busca de um relacionamento sexual que emancipe na mesma proporção o sujeito amado e o sujeito amante, por parte daquilo que Foucault chama de conveniências, práticas da corte e jogos reguladores do amor, implicaria em uma epistemologia, na qual aquele que se relaciona seria constantemente e ao mesmo tempo, sujeito e objeto de desejo. Sendo assim, para Foucault, existiria nos gregos, mais do que naqueles que os sucederam, uma necessidade de entender o amor em seu mais profundo princípio. Ou seja, os gregos se esforçaram como nenhum outro povo no intuito de descobrirem qual a forma de relação afetiva capaz de possibilitar respectivamente conhecimento e cuidado de si. De acordo com Foucault, ao contrário do que ocorre na cultura cristã, na qual há sempre uma preocupação com a questão da simetria entre o homem ativo e a mulher passiva, nos gregos o que se problematiza é modo como duas pessoas se relacionam. Nessa perspectiva, a pergunta não seria quem se relaciona, mas o modo como fazem isso. Ou seja, se o relacionamento implica ou não em autoconhecimento e por conseqüência emancipação do individuo. A ligação entre amor e conhecimento de si na Grécia clássica se acentua ainda mais no Platão apresentado por Xenofonte no Banquete. Nesse contexto, o discípulo de Sócrates discursa sobre a existência de dois tipos de amores, a saber, o amor da alma e o amor do corpo, no qual o ultimo é desprezado em relação ao primeiro. Sendo assim, seria preciso certo castramento dos desejos e dos apetites sexuais em nome de uma espécie de amor amparado não mais pelo Eros, mas pela Philia. Como se pode ver, no amor platônico apresentado por Xenofonte, a amizade toma o lugar da prática sexual e faz migrar o problema da questão moral para a questão ontológica. Isto é, na perspectiva do Platão que estamos tratando, não se pergunta simplesmente o que é o verdadeiro amor, mas o que é o verdadeiro amor em seu ser mesmo. Não se trata de uma interrogação sobre amor, mas sobre ser do amor. Contudo, embora Platão tenha traçado essa definição entre o mau amor do corpo e o belo amor da alma, Foucault entende que não se trata da exclusão do corpo caracterizar o amor para os gregos.  Segundo o filósofo francês, por mais desprezado que o corpo seja, em Platão, ele tem seu papel em relação ao belo. Dizendo de outro modo, o corpo seria o estágio mais primitivo da purificação da alma do individuo. Logo, na evolução do homem platônico, teríamos sucessivamente: o belo corpo, os belos corpos, a alma, o que existe de belo nas ocupações, as regras de conduta, o conhecimento e finalmente o belo separado de qualquer coisa. Segue-se disso, que o problema não seria exatamente o amor pelos corpos, mas sim a estagnação numa etapa primitiva do amor, digna, segundo Platão, das almas acorrentadas na caverna, que por tal condição se encontrariam impedidas de se constituírem senhoras de si mesmas. Portanto, na teoria platônica, o modo incorreto de se praticar o amor resultaria em uma limitação epistemológica, na qual ficar preso ao outro pelo corpo equivaleria a não chegar ao conhecimento verdadeiro. Na leitura de Foucault, o mérito dos gregos, no que tange ao amor, é que eles resolvem a dificuldade do objeto de prazer, pois conseguem concatená-lo com um modelo de verdade, capaz de tornar o individuo passivo, que “deveria” ser submisso na relação, como ocorre com a mulher na monogamia ocidental, forte e viril, ao se tornar objeto de desejo do mestre que a partir de então passará a guiá-lo. Sendo assim, a literatura grega, sobretudo a teoria de Platão, oferece um conteúdo verdadeiro para o amor, ou seja, fundamenta um amor que pode ser a partir dele mesmo paiderastes como philerastes. Em outras palavras, um amor que ensina e ao mesmo tempo é amigo. Nessa perspectiva, o mestre ensina ao rapaz o que é a sabedoria no lugar de submetê-lo a uma relação, como ocorre no caso de Alcebíades, no qual os belos jovens são assediados em troca dos favores e da sabedoria do mestre. Porém, o Sócrates descrito por Platão seria amado tão somente pela virtude de conseguir resistir aos belos rapazes e não por sua estética ou utilidade. Sendo assim, Sócrates estaria mais relacionado com a figura do pai, do mestre e daquele que exerce a virtude, do que com um objeto físico de desejo. Segue-se disso, que o amor relacionado com o mau, a fidelidade, a monogamia, a exclusão do parceiro do mesmo sexo são heranças da moral judaica cristã que, com exceção do rigor, da estratégia, da quantidade e da oportunidade, nunca estiveram presentes em solo grego. A cultura ocidental, relata Foucault, teria se apropriado de fatos isolados na historia para reprimir a liberdade sexual. Conclui-se a partir disso que a rigorosidade na moral sexual grega, que por sua vez possibilitou todo rigor na moral judaico-cristã, em nada se parece com a repressão sexual ocidental, mas sim com uma moral voltada ao sexo que permite a emancipação do individuo enquanto sujeito e ao mesmo tempo enquanto objeto de desejo, para o qual o amor se apresenta em forma de amizade e sabedoria propiciadas pelo mestre, que por sua vez ocupa o papel do enamorado, na medida em que conduz o outro até a verdade. Nesse sentido, é possível detectar na cultura grega clássica, por meio das relações entre os rapazes, os elementos mais importantes da ética sexual, que contraditoriamente, mais tarde seriam rejeitados pela sociedade ocidental em nome da necessidade de uma economia dos prazeres.