quarta-feira, 19 de março de 2014

Foucault: um pensamento marginal

Fernanda Ramos Leão

É possível pensar o conceito de “margem” sob várias acepções. Há, é claro, seus significados literais, entre os quais talvez o mais comum seja o geográfico. Assim, podemos falar sobre as margens de um rio: seus contornos, seus limites. Outro modo bastante popular é atribuir-lhe um sentido negativo ou pejorativo, usado de modo sociológico para indicar uma pessoa, grupo ou classe que se encontra forçosamente excluída, separada, às margens da sociedade. “Pobres são marginalizados”, por exemplo. Ainda nessa linha, o termo também é associado a indivíduos criminosos ou considerados vagabundos, delinqüentes, mendigos... “Fulano é um marginal”, costumamos ouvir. Uma terceira maneira de se pensar a noção de “margem” ou “marginal” é num sentido positivo, elogioso (ao menos a meu ver ou a quem, assim como eu, aprecia coisas desse tipo): trata-se da ideia de margem como fronteira, porém não mais relativa à geografia, mas – de maneira análoga – simbolizando simplesmente a linha tênue onde se encontram dois ou mais campos, extensões. É o espaço onde se misturam duas ou mais ideias. É o ponto de conexão, convergência ou ressonância entre diversos modos de pensar, ou entre diferentes áreas do conhecimento e que, por essa razão, acaba sendo o ambiente apropriado, propício e profícuo para a reflexão filosófica. Certamente, é neste contexto que se delineia e se situa a proposta de Michel Foucault; é deste lugar que ele nos fala de sua filosofia. Uma filosofia – sem dúvidas – marginal; uma filosofia de fronteira, com regiões sempre inexploradas ou pouco exploradas, e por isso mesmo com muitas possibilidades de análises, hipóteses, descobertas, críticas e estudos. É um modo complexo e múltiplo de pensamento, que envereda-se por caminhos novos e paisagens desconhecidas, o que pode ser até perigoso, mas sempre estimulante. Proponho ainda mais um motivo para predicarmos de “marginal” a filosofia foucaultiana, que decorre justamente dessa própria característica: em contato com seus textos, notamos rapidamente que os recortes, problemas e personagens elencados pelo filósofo não são nada tradicionais, clássicos ou universais. Pelo contrário: seus alvos de investigação e análise são sempre particulares, “menores”, ou então versam sobre assuntos que por algum motivo foram ocultados, desprezados ou esquecidos. Dito de outra forma, Foucault não faz parte do mainstream filosófico, apesar das eventuais “modas” que, vira e mexe, acabam sempre  rondando seu nome e suas ideias. Assim, sua obra em geral também não se encontra entre a bibliografia básica acadêmica ou da história da filosofia, o que inevitavelmente nos faz pensar: por quê? Por que devemos ler este ou aquele filósofo específico? Com que critérios é feita essa escolha? É como se fosse impossível pensar sem ter lido Platão ou Kant. Atenção: não se trata de negar a importância dos clássicos ou dos grandes nomes da história da filosofia, mas de questionar até que ponto a arbitrariedade dessa seleção poderia amputar o alcance possível das mais ilimitadas e ricas expressões que o nosso pensamento é capaz de produzir... mas isso já é assunto para outro texto.

8 comentários:

  1. Oi Fernanda,
    Acabo de ler seu texto. Só posso dizer algo mais ou menos assim: "Uau!!!" Perfeita a sua reflexão e instrutiva (e instigante) também. Acho que a ideia explorada por você é totalmente correta... Dá um TCC (ui!), artigo, comunicação, etc. e etc. e tal.
    Obviamente, há coisas não exploradas por você e quem sabe valeria a pena: Deleuze explorou muito essa noção de "menor", ele vai falar de literatura menor para se referir a ninguém menos que Kafka! Certamente tal ideia pode ser aplicada a filósofos como Foucault. Da mesma forma a ideia de marginalidade pode ainda tematizar e problematizar as dicotomias como exclusão/inclusão, não apenas num sentido sociológico, mas também para pensar a história da filosofia e das ideias. Lembra também de quando discutíamos Bataille com Foucault? refiro-me à noção de transgressão. Quero dizer: como margem e transgressão parecem formar um paralelo simétrico (dois lados da mesma moeda talvez) em que um exige o outro. Se a transgressão - seja como praxis ou em teoria - afirma o que há para ser transgredido é talvez em razão de que o ímpeto transgressivo já seja, como ação e pensamento, um ímpeto marginal. E acho tudo insto interessante, pois não classifica o pensamento, em particular o de Foucault; mas também não classifica qualquer pensamento em seu ímpeto transgressivo e emancipador (ensina-nos Bataille: a ação para a libertação não é coincidente com a ação livre). E o mérito desse pensamento marginal, e aqui sustento o que já é óbvio que também acho que ele seja transgressivo, é justamente de desrespeitar as regras que compartimentalizam o pensamento, classificando em "sérios" e "tolos" (ou f'uteis ou levianos, como quiser). Certamente há muito sobre o que pensar aqui.
    Gostei muito, meus parabéns!
    Abraço,
    Marcos Nalli

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    1. Nalli, agradeço imensamente pelos seus comentários, me foram muito úteis para enxergar possibilidades de continuação e aprofundamento. Sobre Deleuze, foi inspirada por ele mesmo que tive a ideia inicial para o texto. Além de ser também autor de um pensamento marginal e multidisciplinar, sei que ele fez uma crítica ferrenha e interessantíssima à história da filosofia, só preciso descobrir onde foi que eu li isso (rs!). Quanto ao Bataille, nossa, seria uma alegria poder incluí-lo no jogo, realmente perfeito o paralelo entre “margem” e “transgressão”. Adorei! Obrigada!
      Fernanda Leão

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  2. Fernanda, como prometido li seu texto. Muito bom. Acredito que esta questão da marginalidade, que muito me agrada, é algo que perpassa toda obra de Foucualt, desde seus primeiros escritos até os póstumos. O próprio Foucault, disse em algum lugar que não me recordo, que suas pesquisas eram feitas a partir de livros que ao serem impressos, dormiam por séculos nas prateleiras: livros marginais. Uma filosofia da diferença não pode seguir os moldeis tradicionais, tem que chafurdar naqueles lugares que ninguém passou; que supostamente não há nada de interessante ou profícuo. Como o Nalli disse, acredito que você poderia explorar esses dois âmbitos: Marginalidade e transgressão. Pois, sendo marginal o pensamento de Foucault, isto já lhe empresta um caráter transgressor, o que lhe torna extremamente interessante.
    Franco Pereira Leite.

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    1. Valeu, Franco!
      Parece que a marginalidade, logo também a transgressão, realmente são características bem notórias do modo geral de pensar do Foucault. O que, aliás, é bem coerente com o convite filosófico que ele nos faz, que é exatamente o de tentar pensar diferentemente. E creio que estamos de acordo quanto ao fato de que essa dissidência exerce sobre nós um relevante fascínio, não é? Aí eu te pergunto (pergunto a todos): por que essa preferência? Querendo com isso na verdade saber: Qual a vantagem de se pensar assim? Ou será que somos apenas rebeldes sem causa?
      Fernanda Leão

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    2. Vou responder com a frase que recito todas as noites antes de dormir: ''Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir.” Pensar implica algo diferente, se não fosse isso seria comentário. Rebeldes sem causa jamais, sabemos muito bem qual é a nossa causa: Transgredir (ultimamente estou gostando do termo profanar). F.P.L

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  3. Olá Fernanda, Olá Franco.
    Acho que tem algo bastante importante que você coloca aqui, a questão da rebeldia... Eu respondo sua pergunta/provocação do seguinte modo: Sim, somos rebeldes sem causa (rs)! Num duplo sentido: primeiramente por que essa rebeldia aviva em nós certa jovialidade (não importa que idade tenhamos) que é realmente sem causa, isto é injustificada, e por isso quase leviana. Afinal ela nos parece colocar - ou melhor, nela nos colocamos deliberadamente - numa espécie de ilusão auto-imposta de que podemos mudar o mundo e suas injustiças, que queremos um mundo senão melhor, pelo menos diferente do que está aí, ou mesmo por uma espécie de dandismo ou romantismo pueril. Mas eu acho que podemos conceber ainda outro motivo: não temos claro um projeto, um protocolo utópico que justifique ou legitime nossos atos. No entanto, não incorremos realmente numa ilusão. Mesmo que erremos em nossos diagnósticos e prognósticos sobre o estado atual da sociedade e cultura na qual estamos imersos e na qual vivemos e perpetuamos, parece-me que essa aparente rebeldia coincide com a dita curiosidade foucaultiana que faz com que não apenas tentemos mudar o que já somos e como somos, mas que também nos força, ou molda, a aguçar nosso instinto de realidade. Aprendemos, creio, a reconhecer em nós mesmos os elementos que nos determinam e constituem, e aprendemos também, a partir deles a considerar sempre a possibilidade de que ainda assim podemos agir e ser diferentes do que somos até então.
    Abraço,
    Marcos Nalli

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  4. Tudo bem Fernanda, como eu já tinha dito seu texto ficou muito bom e eu tenho um artigo, que eu só vi ontem que trata dessa questão do sujeito em Foucault é antigo mas acho que pode te ajudar, vou passar para você quinta ok.
    Ricardo

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  5. Fernanda adorei seu texto, muito bonito e bem escrito. Recordou-me o texto muito citado de Foucault "A vida dos homens infames", talvez seja uma boa referência para dar continuidade a esse pensamento. Abraço
    Lorena Balbino

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